Imagem capa - O CORDEL RESISTE por Portal Conexao Italia Brasil
Massilon Silva *

O CORDEL RESISTE

Em meio ao verdadeiro caos em que se transformou este país chamado Cordel, muita coisa boa emergiu do terreno pantanoso em que a literatura de folhetos mergulhou nos últimos tempos, com produções de qualidade no mínimo duvidosa. Isso porque, como já pude manifestar em outras oportunidades, com o advento da Lei 12.198/2010 que regulamentou a profissão de cordelista e, mais tarde, com a elevação do cordel pelo IPHAN à categoria de Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil, muita gente enxergou a oportunidade de apresentar seus escritos como pertencentes a tão nobre categoria. Ora, não é bem assim. A própria lei em seu artigo 2° houve por bem reconhecer a existência em separado e com características distintas do repentista para, em seguida, no artigo 3°, a ele equiparar outros artistas como violeiros, emboladores de coco, poetas repentistas e, no inciso IV, "escritores da literatura de cordel".

A simples leitura do texto legislativo deixa clara a "equiparação" do cordelista ao repentista para os efeitos legais, sem margem para  interpretação forçada. Não é o repentista que é cordelista, mas este que se equipara àquele.

Nada obsta porém, que repentistas de alto nível  sejam também exímios cordelistas, como é o caso do aplaudidíssimo Geraldo Amâncio. Seu livro Lampião rei do cangaço (Editora IMEPH - 2015) é um exemplo acabado de refinada métrica, além de rima e oração impecáveis. O problema que não para de crescer, e não seria exagero dizer que se agiganta, é quanto ao número de publicações de qualidade infinitamente inferior que invadem o mercado, confundindo tanto o grande público leitor quanto os professores e pesquisadores, estes que se veem diante de tantos pseudo-cordelistas que chegam a quase entrar em parafuso. E é muito maior ainda quando constata-se a absoluta ausência de trabalhos que apontem corretamente para o que se pode considerar Literatura de Cordel.

Voltamos, por ser inevitável, ao problema da sistematização, que continua na estaca zero. Um dado preocupante é o grande número de concursos de poesia, contos e crônicas que ultimamente acrescentaram o cordel ao seu portfólio. Primeiro porque, talvez por falta de conhecimento específico de seus organizadores, limitam a um reduzido número de estrofes (em geral 32) e até pela impossibilidade de um justo julgamento, aí avistada a mesma carência técnica.

Poucos são os concursos merecedores de aclamação, respeitadas as exceções, que são ainda raras. Podemos citar como positivos os concursos promovidos por academias e congêneres, sendo exemplos dignos de nota os que receberam nas últimas edições a chancela da Academia de Cordel do Vale do Paraíba, Academia Tobiense de Letras e Artes e Café Poético de Pão de Açúcar. Outros, no entanto, são de estarrecer, como é o caso de um realizado recentemente por um grupo de WhatsApp, para escolher os melhores do mês, constatando-se entre os vencedores poetas que jamais escreveram um único cordel.        A culpa, neste caso, é bom que se diga, não foi dos poetas votados e consequentemente escolhidos, mas dos "eleitores", que demonstraram falta de conhecimento, para dizer o mínimo.

Nem tudo porém está perdido. Feita esta digressão, passemos a explicar o motivo da expressão "muita coisa boa" do desabrochar deste artigo e que até agora pareceu perdida em meio a tanta nota de reprovação. Vamos destacar a seguir alguns nomes que dedicam a quase totalidade de seu tempo disponível a produzir grandes obras. Estes que gradativamente se afastam da mesmice, para apostar na renovação positiva da arte cordelista.






Comecemos pela figura do cordelista e xilógrafo João Gomes de Sá, um alagoano residente em São Paulo, que ao lado de outro entusiasta oriundo do mesmo estado do nordeste brasileiro, o também cordelista Ednaldo Alves, forma uma dupla digna de aplausos, não apenas pela indiscutível qualidade de seu trabalho, mas pela dedicação à causa cordeliana.
Tenho em mãos a obra de João Gomes de Sá que por ele me foi gentilmente presenteada, com o título O Corcunda de Notre Dame em Cordel, uma feliz adaptação do livro do consagrado escritor francês Victor Hugo. Não se trata de um simples trabalho de recontação da história original, com transmutação para versos de cordel; é muito mais, pelo esmero editorial, beleza e precisão da narrativa, métrica, rima e oração, enfim tudo aquilo que compõe o universo do verdadeiro cordel, sem esquecer as ilustrações de Murilo e Cíntia. A apresentação é do renomado escritor e pesquisador Marco Haurélio, que ao lado de Varneci Nascimento, do próprio Sá e outros, formam o coletivo SP CORDEL, ao que me dei o direito de intitular A Escola de São Paulo, em homenagem ao trabalho diferenciado e prenhe de modernidade que o grupo produz.
Na esteira de boas notícias apresento ao caro leitor obras que, se não alcançam o mesmo patamar de sofisticação das do pessoal da Escola de São Paulo, ficam longe, muito longe da mediocridade reinante no mercado. Recomendo Valdemar e Rita e o Hábitat de Miséria, um trabalho simples mas consistente do poeta João Dias, Rouxinol do Rinaré  Edições, Fortaleza, CE, 2020. A este segue-se o sofisticado MACUNAÍMA O Herói sem Nenhum Caráter, Editora Areia Dourada - SP. A obra de Mário de Andrade adaptada para o cordel por Josué Gonçalves traz apresentação de Nando Poeta, para quem o escritor paulistano ícone da Semana de 22, bebeu na fonte do cordel, inspirando-se no clássico A Vida de Cancão de Fogo e seu Testamento, de autoria de ninguém menos que Leandro Gomes de Barros.
Quem mais? Um Olhar Sobre o Cangaço, dos cordelistas sergipanos José Reis e Ana Reis é um exemplo perfeito e acabado de qualidade editorial. Digo isso em homenagem à qualidade superior do trabalho, muito embora, como todos já saibam, não seja adepto do cordel feito a mais de duas mãos, por sua parecência com o abominável Cordel Coletivo, que querem empurrar goela abaixo do desavisado leitor como sendo cordel, que não é.
O presente trabalho de Ana Reis faz parte de uma outra vertente do cordel, a que esmiúça a vida de Virgulino Ferreira e seus cangaceiros, coiteiros e perseguidores, que volta e meia retorna ao imaginário das pessoas com novas histórias, novas teorias como é o caso do recente Lampião e sua Verdadeira Morte, do escritor alagoano Antonio Pinto, que parece inaugurar uma nova era nas lendas do cangaço nordestino. Sobre este assunto pretendo falar na próxima semana; por hoje deixo a minha convicção de que apesar dos pesares "o cordel resiste".


Autor: *Massilon Silva
*Escritor e poeta, membro da Academia Brasileira de Literatura de Cordel.