CORDEL ONTEM E HOJE *Massilon Silva
A Ascenção experimentada pelo cordel nos últimos tempos é fato público e notório, não havendo qualquer reparo a ser feito, em especial no tocante à visibilidade que tem alcançado, pela chegada às prateleiras das livrarias, às salas de aula, aos saraus literários, aos eventos de grande repercussão como Bienais de Livros e congêneres.
Também não se pode negar o surgimento de novos cordelistas, nascidos no embalo da proliferação dessa arte via redes sociais, embora se mostre sintomática a ausência da produção de folhetos com razoável número de estrofes, o que caracteriza o cordel como literatura representativa das belas histórias, romances, contos e novelas, como se fez no passado pelas mãos dos grandes mestres. O que se vê, em geral, são poemas longos ou breves que obedecem às regras básicas do cordel de métrica, rima e oração, mas que não despertam no leitor interesse pelo conteúdo, pendendo mais para o repente, que é outra vertente da poesia popular. Isso faz lembrar Sérgio Bittencourt em sua lapidar sentença "ninguém é poeta por saber rimar", na canção Eu Quero.
E por que essa minha observação que beira o radicalismo? Pela simples constatação de que a narrativa cordeliana perdeu em qualidade, deixando de ser atração pelo que transmite e ao público leitor. Aliás, nem identificamos hoje um "público leitor", mas apenas uma grande leva de pessoas fãs do verso rimado e/ou atraída pela propaganda oficial, que em termos de Cordel "não sabe da missa um terço". Se recuarmos no tempo iremos nos deparar com A Batalha de Oliveiros e Ferrabrás ou Romance Pavão Misterioso em que Leandro Gomes de Barros e José Camelo de Rezende, respectivamente, produziram verdadeiros épicos, com narrações tão bem desenvolvidas que se perpetuaram no tempo, sendo ainda hoje as duas obras mais conhecidas da produção cordelística. Obras dessa natureza podem ser comparadas às de Alencar, Machado e outros em termos de conteúdo e erudição e, de certo modo, venceram o tempo.
Outras grandes obras em cordel sobreviveram tais comoTubiba, João Cambadinho, Juvenal e o Dragão, Proezas de João Grilo e os inúmeros folhetos sobre Lampião, talvez o personagem sobre quem mais se escreveu. Essas narrativas porém, tornadas clássicos, atenderam às exigências do público leitor de sua época e hoje são procuradas mais como curiosidade literária.
O que me leva a essa reflexão é o fato de que, em regra, a arte reflete e registra o momento vivido pela sociedade, pelo que se faz imprescindível a atualização de seu conteúdo, o que não se verifica no cordel dos dias atuais, infelizmente. Constatamos alguma renovação, é claro, mas pontual, sendo digno de registro o período em que os cordelistas eram verdadeiros repórteres ou cronistas, relatando os acontecimentos importantes e que teve como expoente Rodolfo Coelho Cavalcante. Recentemente li trechos de um cordel de autoria de Olegário Alfredo - O Ataque Terrorista nos EUA - falando sobre os acontecimentos de 11 de setembro de 2001, um exemplo desse nicho de mercado que, por razões óbvias caiu em desuso. O cordelista leva sua mensagem a pé enquanto a Internet vai de Boeing 477. Era novidade sim, quando o cordel foi, por assim dizer, uma fonte de notícias.
No rol das poucas novidades presenciamos os trabalhos de cordelistas como Ana Santana, Gonçalo Ferreira, Varneci Nascimento e outros, que em seus livros transportam os grandes clássicos da literatura brasileira para a linguagem do cordel. Para concluir este tópico não podemos olvidar o valioso trabalho daqueles que lutam para levar o cordel às escolas, transformando-o em veículo de informação ao tratar de temas atuais e até mesmo polêmicos, e cito aqui o poeta cearense Tião Simpatia, meu confrade na Academia Brasileira de Literatura de Cordel, com seu bem sucedido folheto abordando os aspectos da Lei Maria da Penha e sua eficácia na comunidade.
Feitas estas considerações, passo ao tema que inspirou esta crônica. Meditemos um pouco sobre o assunto. Ao chegar a uma banca de revistas, livraria ou efetuar uma compra online, o leitor em geral tem em mente um autor ou determinada obra, e busca impelido pela importância do tema, pelo menos em sua visão, ou levando em conta o sucesso já obtido pela publicação abordando um assunto específico. Disso resulta a compra do livro em quantidades cada vez maiores e a recompensa econômica do autor, que não pode ser dissociada do sucesso alcançado por seu trabalho, que pode até não ser de tanto valor intelectual.
Passemos aos exemplos concretos.
A tentativa do prefeito da cidade do Rio de Janeiro, de impedir a exposição e venda na Bienal do Livro deste ano, da HQ da MARVEL Vingadores, a Cruzada das Crianças (escrita por Allan Heinberg e ilustrada por Jin Chereng), não apenas permitiu visibilidade a seus criadores como tornou-se em apenas um dia o maior sucesso da Bienal, com 14.000 exemplares vendidos, aí incluídas as demais publicações com temática LGBT. E mais: Vingadores só é encontrado hoje ao preço de R$-250,00 a unidade. Alguém poderia dizer que esse número, impensável quando se fala em venda de livros, só foi alcançado graças à intervenção política de determinado pré-candidato, que comprou e distribuiu com o público, mas político é também quem tentou proibir e então, neste ponto, ficaram elas por elas.
Outro exemplo recente de estrondoso sucesso de vendas no mundo inteiro é o livro No Armário do Vaticano, do francês Frédéric Martel, distribuído no Brasil pela SARAIVA, Best seller do New York Times, que aborda o problema do homossexualismo na igreja católica.
Na mesma toada podemos tratar aqui de mais uma tentativa de proibição. Trata-se de uma cartilha distribuída nas escolas públicas do Estado de São Paulo e que o governador João Dória mandou recolher esta semana, mas esbarrou em decisão judicial contrária. A tal cartilha também faz referência à ideologia de gênero, hoje tão discutida pela população.
Alguém ainda duvida do excepcional retorno financeiro proporcionado aos autores nos três exemplos acima?
Ora, é inegável que os autores de cordel consideram como tabu certos assuntos que hoje são discutidos nas escolas, nas ruas, nas Universidades, nas igrejas e em qualquer lugar, despertantes do interesse da maioria da população. Nossa opinião é no sentido de que "o artista tem de ir aonde o povo está" como bem disse Milton Nascimento. Longe deste colunista querer pautar o trabalho de quem quer que seja mas não se pode esquecer que o cordelista é um profissional, inclusive nos termos da lei, e como tal deve auferir ganhos para viver condignamente de sua profissão. Isso só será possível se houver um despertar para a discussão em versos de temas polêmicos, com cada um se posicionando de acordo com suas convicções. O resto é com o mercado.
Temas ligados ao consumo de drogas, homossexualismo (masculino e feminino), pedofilia, política, religião, ateísmo, etc..., são caros aos leitores e é pura hipocrisia dizer que os cordelistas os ignoram ou deles fazem "tabula rasa". Tanto leitores como escritores têm suas posições contrárias ou favoráveis a esses assuntos. Por que não abordar a política, se uns são favoráveis às ações do atual governo e outros radicalmente contrários? E por que não fazer o mesmo com os outros temas, sempre pautando pelo respeito às opiniões divergentes? Falar de Lampião ou do cangaço é muito importante, mas essa literatura se mantém ainda de pé por registrar um fato histórico, porém nem mesmo nesta seara nossos cordelistas dão-se ao trabalho de discutir os aspectos sociais do fenômeno. Portanto, se desejam fazer sucesso, vender livros e galgar degraus mais altos, inclusive pelo lado econômico não deixem passar a oportunidade; escrevam sobre temas polêmicos e corram para o abraço. E lembrem-se: Lampião e seu bando hoje nada mais são que um retrato na parede. Não deixem que o cordel volte à condição de literatura para turistas e curiosos em geral.
Por derradeiro, pra não dizer que não falei de flores, não poderia deixar de fazer aqui um importante registro. Trata-se do Encontro da Literatura de Cordel, dia 13 de setembro em Natal, Rio Grande do Norte, uma realização do IPHAN, com apoio de outras entidades, inclusive do Ministério da Cidadania.
Autor: *Massilon Silva
*Escritor e poeta, membro da Academia Brasileira de Literatura de Cordel.