TEMPOS DIFÍCEIS *Massilon Silva
Antes de discorrer sobre o assunto central da coluna de hoje, quero registrar os votos de felicitações recebidos nos últimos dias pelo comentário elogioso que fiz no artigo anterior a um trabalho realizado por alunos de uma instituição carioca de ensino, a que por eles foi dado o nome de Cordel Coletivo. Os que me felicitaram o fizeram principalmente porque eu teria dito, e disse-o efetivamente, que estaria disposto a repensar o meu conceito sobre essa nóvel modalidade de folheto. Quero, em poucas palavras, esclarecer que minha opinião sobre o cordel coletivo continua sendo discordante, e só em casos específicos como aquele, nos moldes em que foi concebido, me inclino a repensar, sem qualquer compromisso aprovativo. Feitos os devidos esclarecimentos, vamos direto ao assunto que me conduziu às reflexões seguintes.
O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN - vem realizando encontros nas diversas unidades da Federação brasileira, ocasiões em que faz reunir número considerável de cordelistas e instituições da área no intuito da, segundo os propósitos expostos, "construção da salvaguarda da literatura de cordel". As propostas apresentadas nessas reuniões guardam, como seria de se esperar, similaridade de conteúdos, com pequenas variações a depender das demandas de cada Estado, porém resumem-se basicamente a 1. articulação institucional e de estímulo à prática através da inserção da literatura de cordel nas políticas públicas; 2. ampliação e sistematização do seu espaço nas escolas; 3. incentivo à tipografia local; 4. valorização e revitalização das cordeltecas; 5. elaboração de diretrizes para o acervo digital; 6. estímulo a circulação e à publicações temáticas, e mais algumas outras atividades, todas ou quase todas elas seguindo o mesmo roteiro, variações sobre o mesmo tema com pequenas oscilações como dito linhas acima.
As ações de proteção ao patrimônio (cordel) propostas pelo órgão federal são merecedoras de aplausos e quase sempre recebem apoio dos interessados, no entanto não apresentam quase nada de positivo quando se trata de resultado prático para o cordel e para os cordelistas, pois o IPHAN não dispõe de meios para e nem é da sua competência pôr em prática ações objetivas. O que podia fazer já fez; foi o reconhecimento da literatura de cordel como patrimônio histórico imaterial, o que lhe dá "status" nunca antes alcançado. Salvaguardar que, segundo o Dicionário Michaelis (Editora Melhoramentos Ltda.) é "ação que visa preservar a identidade e perenidade de uma obra, de um patrimônio, etc.; preservação", tem por finalidade proteger, defender, pôr fora de perigo, prevenir, resguardar e outras ações do gênero é necessário, mas não sai do campo meramente abstrato, sem resultados concretos para os envolvidos ou beneficiários finais que são em última análise os cordelistas, as editoras, os comerciantes, etc... E quando falo de algo de concreto estou falando da própria sobrevivência da atividade cordeliana no campo prático, que nada mais é do que a busca de formas objetivas por comércio, por leitor, o que passa necessariamente pelo exercício da atividade mercantil.
capa de Vauber Rolan em gravure computer
Parece contrassenso (e é) que a literatura de cordel, pujante nos seus primórdios, há mais de cem anos, depois de um relativo ostracismo tenha retornado com toda força e vigor pelas mãos da mídia, dos poderes públicos e associações de classe (Academias), não se sustenha economicamente. Alguma coisa com certeza está errada; está fora da ordem mundial como diria Caetano, e precisa urgentemente de conserto, sob pena de o cordel voltar inexoràvelmente à condição de literatura menor. E não será ao poder público que caberá a obrigação de salvar o cordel, como veremos mais adiante.
O que estou dizendo não é que a literatura, e aqui falo especialmente da de cordel, assim como as outras formas de arte não necessitem do incentivo do poder público, precisa sim, mas não deve dele depender exclusivamente. O que seria de Rodolfo Coelho Cavalcante, Leandro Gomes de Barros, José Camelo de Melo Rezende, Gonçalo Ferreira da Silva, João Martins de Athyde (editor), João Firmino Cabral, Manoel de Almeida Filho e outros tantos se, em sua época, dependessem de verbas públicas para financiar suas obras? Quanto a Gonçalo Ferreira da Silva, nosso presidente da ABLC, até hoje. E, estabelecendo um paralelo nada esdrúxulo,
o que seria da Bossa Nova se Tom, Vinícius, Nara, Carlos Lyra, Menescal... ; do Tropicalismo se Gil, Caetano, Gal, Mutantes, Tom Zé...., se louvassem a passar por esse mesmo processo de dependência?
Bem assim, a literatura de cordel precisa se autofinanciar bastando, em meu modo de vista e daqueles que comungam com o meu pensar, que os artistas tomem certos cuidados. Vejamos:
O mercado remunera o profissional mas é exigente. Não se admite nem o consumidor valoriza um folheto xerocopiado ou com uma capa desenvolvida de igual maneira, às vezes até confeccionada com colagem de figuras de jornais, revistas e até da Internet, quando existem no Brasil profissionais renomados do naipe de J. Borges ou Vauber Rolan, o primeiro com trabalhos internacionais em xilogravura como é o caso da capa e ilustrações internas do livro O Lagarto, de José Saramago e, o segundo, que usa a moderna técnica da "gravure computer", cujos trabalhos ilustram este artigo. Pelas mesmas razões, idêntico cuidado deve ser tomado no que se refere ao trabalho gráfico e ao conteúdo propriamente dito.
Lamentável é que estejamos presenciando hoje a invasão indiscriminada das bancas e feiras de livros por um material de péssima qualidade gráfica e literária, com textos que vão desde ruins a sofríveis e até mesmo aos quais mem se pode chamar de Cordel.
Pois bem. Nesta quadra dos tempos em que o ruim é a regra e o bom a exceção, só podemos vislumbrar tempos difíceis em que os leitores não se sentirão atraídos pelos cordéis, suas histórias, sua apresentação ou beleza plástica sob o risco de literatura tão importante e tão brasileira cair novamente no ostracismo ou, o que é ainda mais grave, no lixo da história, e aqui peço licença para reproduzir, ipsis litteris, um desabafo do cordelista potiguar Marciano Medeiros ao dizer que hoje o que se vê é "gente que não sabe, dando oficinas; cego guiando cegos, literalmente" (Grupo de whatsapp Cordel Improvisado, em 14/09/2019).
Entendo de outra banda que o cordel deve ser desatrelado do cavalo de Lampião e seus cangaceiros, de Antonio Conselheiro e seus revoltosos esfarrapados e fanáticos, Zumbi ou Padre Cícero; do ninho nordestino e conquistar o Norte, Centro-Oeste, Sul e Sudeste, falar a linguagem e vestir a roupa do brasileiro comum, livre de clichês regionais ou locais.
Precisamos pois, com urgência urgentíssima de mais pesquisadores e autores realmente interessados no assunto, estes últimos para que produzam o material didático confiável a ser absorvido pela demanda escolar em andamento na rede escolar do ensino fundamental, sob pena de os esforços governamentais que resultaram em leis, resoluções e decretos introdutórios do ensino da literatura de cordel nos Estados e Municípios tornarem-se de nenhuma aplicação prática. Basta que tenhamos autores competentes, e eles existem, além de material gráfico e didático de boa qualidade. Pelo contrário, repito, apesar de todo apoio oficial antevejo tempos difíceis.
Para concluir, quero reafirmar minha opinião, segundo a qual cordel não é o patinho feio literário; não é o coitadinho desamparado; não é folclore para ser registrado, catalogado, preservado, salvaguardado. Cordel é literatura, sim, de primeira qualidade e com público cativo, podendo andar com suas próprias pernas como andou no passado glorioso.
*Escritor e poeta, membro da Academia Brasileira de Literatura de Cordel.