JORGE KANECÃO E O CORDEL DE GRACEJO
JORGE KANECÃO E O CORDEL DE GRACEJO
Massilon Silva *
Jorge Luiz Santos Barbosa era seu nome de registro, entretanto não se sabe por qual motivo seus amigos mais próximos cunharam-lhe Jorge Kanecão, que adotou ao longo do tempo e que em certa medida lhe deu fama.
Desde cedo mostrou sua tendência para as coisas ligadas à arte e ao entretenimento, tornando-se já no limiar da adolescência e ao longo dela figura fácil nas rodas de conversas, reunião de boêmios e seresteiros (apesar de não tocar nem cantar) e festas; contando suas histórias pitorescas, aprendidas de malandros e desocupados em geral, mulheres da rua ou de sua própria lavra. Animava qualquer ambiente, desde festas de batizado, aniversário e até velórios. Neste caso especial, dizia ele, a intenção era tornar menos dolorosa a passagem.
Exerceu as mais variadas profissões, tais como servidor público do Ministério da Saúde, onde permaneceu por pouco tempo, passando por apontador de jogo do bicho, cuidador de idosos, auxiliar de marchante, cordelista, vendedor ambulante e, a julgar pelo que me contaram, até mesmo vidente.
Dono de uma inteligência privilegiada e extraordinária capacidade criativa, chegou a escrever para um jornal local assinando uma coluna de variedades, em que contava histórias curtas e picantes sobre a vida das pessoas da cidade e fatos inusitados como a narração sobre o dia em que um urubu desfilou como porta estandarte de escola de samba. O fato realmente se passou e a inditosa ave foi capturada pelo próprio Jorge com auxílio de um providencial anzol de pesca, usando um pedaço de carne como isca. No rol de suas façanhas consta ainda o recolhimento de guimbas de cigarros recolhidas na sala de exibição de um cinema de Recife, quando ainda era permitido fumar em tais lugares, a retirada do fumo e, misturando sobras de Continental, Minister, Kent, Gaivota e outros, criar um novo cigarro, artesanal, ao qual deu o nome de Pão de Açúcar, para homenagear sua cidade natal, que fica localizada na margem esquerda do Rio São Francisco, em Alagoas.
Foi como cordelista, atividade que só viria ser reconhecida como profissão por força de Lei Federal editada em 2010, o campo em que mais se destacou. Fazia versos rimados e metrificados sobre quaisquer assuntos, mas os cordéis de gracejo eram o seu forte. Tenho ainda muitos originais que me enviou para eventuais revisões gramaticais e na esperança de que eu pudesse fazê-los publicar. Não consegui, infelizmente, mas ainda os tenho guardados em uma pasta e sempre leio-os, seja para recordar do amigo seja para deleitar-me com suas histórias intrigantes.
Certo dia contaram-lhe um fato que, ninguém sabe se realmente verídico, teria ocorrido na Câmara Municipal de Vereadores de João Pessoa/PB. Segundo lhe foi narrado, uma Vereadora fez veemente pronunciamento na defesa de uma mulher que fora molestada sexualmente. Dizia então a parlamentar que um sujeito de má fama teria bulinado a vítima, pegando em seu órgão sexual, em atitude não consentida. Como a edil, em seu discurso, repetiu por três vezes o nome popular pelo qual é conhecido o órgão reprodutor feminino, foi repreendida pela então presidente do Legislativo Municipal, que determinou de imediato às taquígrafas e secretárias que retirassem dos anais da Casa aquela palavra impronunciável. Com uma folha de papel nas mãos Kanekão mostrou-me, indignado com a censura imposta à representante do povo, uma réplica em versos que, dizia ele, se vereador fosse teria declamado em plenário. Eis a pérola :
"Peço à vereadora Para que não proibais Que a palavra boceta Se insira nos seus anais.
E de agora em diante Espero que permitais A inclusão do com que trepas
Naquilo com que sentais.
Em outra oportunidade foi abordado por um amigo que contou-lhe, entre triste e revoltado, que a mulher já o teria abandonado por doze vezes, e que em todas elas só retornou graças à intervenção de um renomado médium de Aracaju, eficiente na resolução de problemas amorosos, que com poderosas orações e ajuda de espíritos mais elevados, sempre acalmava o coração da jovem senhora, fazendo-a retornar ao leito conjugal. Novamente os versos de Jorge foram reveladores de sua aguçada inteligência. Outra pérola :
"Ser corno é coisa normal Uma duas ou três vezes Já faz parte dos reveses Da vida sentimental.
Pode ser moça ou rapaz A idade é letra morta Quantas vezes não importa
Mas doze já é demais.
Sabedor agora de sua morte prematura, veio a lembrança de uma frase de Carlos Drummond de Andrade na crônica A Porta do Céu, por ele atribuída a Dante Milano no enterro de Jaime Ovale:" É um mundo de poesia irrealizada que se sepulta".
* Escritor e poeta, membro da Academia Brasileira de Literatura de Cordel.