NÃO LI E NÃO GOSTEI Massilon Silva *
NÃO LI E NÃO GOSTEI
Massilon Silva *
A elevação da literatura de cordel à categoria de Patrimônio Cultural Brasileiro e o reconhecimento por lei federal da profissão de cordelista deram um impulso a esse gênero literário como não se via há muitas décadas. Isso tem resultado no incremento da produção de novas obras, divulgação intensa, aumento galopante (sem trocadilho) do número de cordelistas, etc... Aliado a tudo isso presenciamos o crescimento a olhos vistos do número de consumidores do produto e a presença deste em lugares nunca antes imaginados, saindo das feiras livres e cordeltecas até então dispersas, pequenas bancas especializadas, para ocupar seu mais que merecido espaço nas grandes feiras literárias, chegando a eventos de nível internacional como a Bienal do Livro de São Paulo, do Rio de Janeiro, de Maceió, Itabaiana e outras, além de marcar presença quase diária nas escolas deste país continente.
Todo esse fomento ao consumo do cordel tem gerado uma visível euforia nas redes sociais, no rádio, na TV e, é claro, entre os cordelistas. E é exatamente deles que pretendo falar hoje, pois é a eles unicamente que cabe o ônus pela manutenção do "status quo" a que chegamos, sua consolidação e a tão desejada evolução.
Pode parecer inconsequente dizê-lo, mas a proliferação de cordelistas no mercado guarda relação direta com a qualidade das obras ofertadas ao público consumidor. Explico. É comum vermos hoje os chamados "poetas de bancada" (e os cordelistas também o são) escreverem os mais distintos gêneros de poesia e dar-lhes o nome de, poesias de cordel, versos de cordel, estrofes de ou em cordel. Inserem-se aí o repente, o galope, as quadras em sequência, décimas, glosas em geral e mais uma infinidade de formas poéticas que não se enquadram no gênero aqui tratado - o Cordel.
O verdadeiro cordel ou Cordel de Raiz para alguns, sustenta-se no tripé "métrica, rima e oração", que se pode acomodar em estrofes de seis ou sete versos de sete sílabas poéticas. Quanto ao número de estrofes pode variar, porém os mais exigentes só admitem a classificação como cordel as estórias, reportagens, contos, romances, crônicas, novelas, etc..., em textos com um mínimo de trinta e duas delas. Fora destas regras fixas, poderemos estar diante de qualquer outro formato de poesia popular, jamais do cordel propriamente dito. É verdade que renomados cordelistas como Rodolfo Coelho Cavalcante e outros ficaram conhecidos também por suas quadras, trovas ou repentes, mas isso jamais se confundiu com sua obra em cordel. Aliás, Rodolfo participou de um grupo do qual fazia parte outro cordelista alagoano, Levino Farias Brasão (Levino Bola), que fundou a primeira aglutinação de trovadores do Brasil, a Associação Nacional de Trovadores e Violeiros (ANTV) que, mais depurada, desaguou no Grêmio Brasileiro de Trovadores (GBT), também pelas mãos de de Coelho e outros abnegados em 08 de janeiro de 1958 (in Vida e Luta do Trovador Rodolfo Coelho Cavalcante, ENO TEODORO WANKE, Folha Carioca Editora Ltd., Rio de Janeiro, 1958).
Muitos dos defensores do chamado Novo Cordel insistem em dizer, dizer e repetir que a poética de Zé Limeira, Zé Brejeiro (morto recentemente), Patativa do Assaré, Zé da Luz ou, para citar os mais recentes, Chico Pedrosa, Jessier Quirino, Leonardo Bastião, Bráulio Bessa e outros é cordel. Não; isso nunca foi. Estes e outros gênios incontestes da poesia popular, não fazem o cordel puro sangue.
O cordel, repito, tem regras fixas, a exemplo do que acontece com o soneto e a trova. O soneto, veja-se, é uma composição poética milenar, formada por dois quartetos e dois tercetos, portanto com quatorze versos, e nem os modernistas de 22 ousaram dizer o contrário. A trova, por sua vez, tem obrigatoriamente quatro versos de sete sílabas poéticas, os versos rimando o primeiro com o terceiro, o segundo com o quarto e deve encerrar um pensamento completo. Fora disso é quadra; não é trova. O Cordel é assim e para ser autêntico suas regras precisam ser observadas.
Um outro aspecto a ser observado é o emprego da gramática, o conhecimento da língua. O Cordel não é e nunca foi uma literatura menor. Ele é a crônica dos eventos diários, o conto, o romance, lido, cantado ou declamado; sempre um instrumento destinado a levar ao grande público da roça ou da cidade suas histórias trágicas ou cômicas. Como tal deve ser fonte de conhecimento para quem o lê. Nunca foi, ao contrário do que muitos ainda pensam, uma literatura de matuto ou destinada a contar histórias de cangaceiros, beatos, padres milagreiros e outras figuras da sociedade rural ultrapassada, embora nade também nessas águas, e de braçada. Aliás, ainda sobre a linguagem, o matuto não tem nenhum orgulho por falar o português de forma inadequada e procura, sempre que possível, aproximar ao máximo sua linguagem das expressões cultas. As palavras às vezes deturpadas e que soam estranhas aos ouvidos mais urbanos, nada mais são do que decorrência de uma gama de expressões próprias e regionais, nunca o erro pelo erro.
Portanto, se quisermos (e devemos querer), que o cordel conquiste as prateleiras das livrarias, as feiras literárias, as escolas urbanas e rurais, as universidades, a mídia, é nossa obrigação fazer dele uma referência na literatura oral e escrita, um instrumento de estudo, de politização, informação, educação e cultura.
Compete a nós, os cordelistas, os editores, os estudiosos, os profissionais da área agora definidos em lei, divulgadores e demais envolvidos direta ou indiretamente nesta arte tão bonita e tão representativa das nossas tradições, pugnarmos pela qualidade literária do cordel, caso contrário ele voltará ao limbo, sumindo até das pequenas bancas, que tendem a desaparecer por um processo natural, passando mais uma vez à condição de oxigênio destinado a manter acesa a chama que alimenta a fogueira dos pesquisadores.
Urgente é que todos os envolvidos no ressurgimento e ascenção do cordel, inclusive economicamente, unam-se numa cruzada pela boa qualidade dele em todos os níveis, a fim de que, no futuro, ao ser perguntado se conhece essa ou aquela obra em cordel, desse ou daquele autor, seu interlocutor não responda com a célebre frase de Oswald de Andrade "não li e não gostei".
*Escritor e poeta, membro da Academia Brasileira de Literatura de Cordel - ABLC.