Cultura
SISTEMATIZAÇÃO "QUAE SERA TAMEN" *Massilon Silva
Hoje eu não pretendia retomar o assunto Sistematização iniciado na crônica anterior; desejava deixar que a ideia se expandisse, se espalhasse, tomasse corpo, fosse encampada e tornada pública pelos apoiadores simpatizantes, a exemplo de Ciro Veras e Alexandra em Alagoas, Vera L. A. Corrêa que comentou favoravelmente na sequência da matéria, Nalda do Rio de Janeiro e outros.
Começaria por traçar um panorama atual sobre os mais recentes acontecimentos na cena do cordel, como, por exemplo, a outorga da Medalha Rui Barbosa à pesquisadora carioca Sylvia Nemer. A solenidade ocorreu no último dia 5 no auditório da Fundação Casa de Rui Barbosa, na capital fluminense, em reconhecimento aos 20 anos por ela dedicados à pesquisa em cordel. Sequencio com o registro da IV Semana Cultural da UFS. O convite dirigido à professora Izabel Nascimento, presidente da Academia Sergipana de Cordel - ASC, diz textualmente ter por intenção "Divulgar a ASC e a Literatura de Cordel" e está assinado pela professora Dra. Carina Batista Sposato, coordenadora dos Observatórios Sociais da UFS. A abertura aconteceu no último dia 4 e para aqueles de outros Estados, UFS é a sigla de Universidade Federal de Sergipe.
Registro, por derradeiro, a realização do 4° Círculo Natalense de Cordel previsto para os dias 14, 15 e 26 deste mês, na Praça Padre João Maria, bairro Cidade Alta, Natal/RN, com vasta programação e o Cordel no Museu. Este importante evento que está em sua 8a. edição ocorreu ontem, dia 9, na cidade de Campina Grande, sendo uma realização conjunta da Universidade Estadual da Paraíba - UEPB, Museu de Arte Popular da Paraíba - MAPP e Academia de Cordel do Vale do Paraíba - ACVPB.
Dito isto, passemos ao assunto sistematização, e o faço porque duas notícias sobre cordel ou o que dele querem fazer me deixaram perplexo e mesmo indignado.
A primeira notícia, mais leve e nem por isso menos preocupante, diz respeito a um concurso em andamento, promovido pela Academia Tobiense de Letras e Artes - Atlas, da cidade de Tobias Barreto, no estado de Sergipe. Consta do Edital 002/2019, item 2. SUBMISSÃO E AVALIAÇÃO, dentre os trabalhos que podem concorrer, "CORDEL: no máximo duas laudas, papel A4, fonte Times New Roman, tamanho 12, entre-linhas 1,5, com todas as páginas numeradas, com título da obra e Pseudônimo". (item 2.2). O mesmo tamanho exigido para, pasmem! os cordelistas, poesia.
Lamento dizê-lo, mas trata-se de um caso de desconhecimento total das regras do cordel, podendo resultar em claros prejuízos ao cordelistas e à arte cordeliana como um todo. Aos cordelistas, porque não se tem notícia de nenhum escritor verdadeiro que tenha produzido uma obra tão resumida que se acomode em míseras dez estrofes, pois é o máximo que se pode escrever em duas laudas de papel A4, letra fonte 12; ao cordel porque corre-se o risco de eleger um vencedor que não fez mais que uma poesia, talvez de cunho popular, sem qualquer relação com a narrativa cordeliana. Sem comentários adicionais, um desastre. O desastre, infelizmente não está restrito a um fato isolado. Vamos ao próximo.
Vejo postado no grupo de WhatsApp da Editora Cordelaria Castro um texto atribuído a Bráulio Bessa com o título "Cordel para exaltar o poder das mãos com Bráulio Bessa" (assim mesmo).
Primeiro quero deixar claro não acreditar que a editora compactue com tamanho absurdo e, segundo, duvidar da autoria. Trata-se de um escrito (estrofe) com mais de vinte versos, o que foge flagrantemente às regras mais elementares do cordel, ainda que se pretenda alcunhar de experimento. Por fim, as aspas e o p minúsculo no final completam a catástrofe.
Deixamos de reproduzir o texto no corpo deste artigo, porque o leitor poderá se "deleitar" com o mesmo vendo a foto ilustrativa nesta página.
Alguns autores introduziram em seus folhetos estrofes com número de versos maior ou menor ao que é considerado normal para o cordel, mas o fizeram dentro de um contexto, tratando-se de clara citação. Isso não invalida o texto em sua totalidade e nem o folheto deixa de ser um genuíno cordel. É o caso, por exemplo, de João Firmino Teixeira do Amaral ao escrever e publicar Peleja do Cego Aderaldo com Zé Pretinho do Tucum, cuja cantoria teria ocorrido no distante ano de 1914. Ali, até a estrofe 38 o autor faz uso de estrofes de seis versos; da 39 até a 48, décimas, próprias das pelejas entre cantadores violeiros (repentistas), e da 49 até o final novamente seis versos.
Sobre o assunto lê-se no Wikipédia: "Peleja é um gênero poético popular dialogado, em que um ou dois poetas compõem verso caracterizando disputa verbal. Normalmente acompanhada de viola em um repente ou registrada em um folheto de cordel".
Atentai bem, diria o ex-senador e orador exímio Mão Santa, para a expressão "registrada em um folheto de cordel", portanto peleja não é cordel assim como repente também não é. Aliás, é sabido e consabido que os repentistas não aceitam o tratamento de cordelistas, considerando a grande diferença existente na composição poética desenvolvida por uns e outros. Os primeiros são essencialmente improvisadores, enquanto que os segundos são os chamados poetas de bancada. Aliás, a própria lei federal n° 12.198/2010 que dispõe sobre o exercício da profissão de repentistas, cuida da separação deste do cordelista, muito embora reconheça as duas atividades como profissão.
Concluo assim minha indignação, pelo menos por hoje, contra aqueles que por desconhecimento ou de forma deliberada querem transformar o verdadeiro cordel em samba do crioulo doido, como diria o inesquecível Sérgio Porto.
Conclamo finalmente a todos os que comungam com o meu pensamento (e não são poucos) para que empunhem a bandeira do puro cordel e, numa referência a Alvarenga Peixoto que, citando o poeta romano Virgílio cunhou na bandeira dos inconfidentes e de Minas Gerais a frase latina tão conhecida, proclamar o slogam SISTEMATIZAÇÃO AINDA QUE TARDIA.
Por :Massilon Silva
*Escritor e poeta, membro da Academia Brasileira de Literatura de Cordel.